Pé na Terra

UTOPIA por um Mundo melhor é possível (e urgente). Fazer e acontecer é desafio que nos transforma em atores de uma revolução.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Dacar precisará de retorno

Ane Cruz
Feminista do PT/RS
“As mulheres devem e podem tomar posição em relação à condição que lhes é atribuída.” Awa Thiam,  escritora do Senegal,1978.

            Mais de 120 países desembarcaram em Dacar/Senegal entre os dias 6 e 11 de fevereiro de 2011. Todos estes países protestando "Por um mundo sem fronteiras" e "não à expulsão dos imigrantes, sim à justiça social".
            Começava assim a 11ª edição do Fórum Social Mundial (FSM), eram aproximadamente 20 mil pessoas pela avenida naquele domingo, 6 de fevereiro caminhando com um sol escaldante e escassez de água... no caminho se encontrava muitos brasileiros e brasileiras vindos de toda parte, eram gaúchos, paulistas, cariocas. Parecia mais que estávamos em Belém, quando aconteceu a última edição do FSM no Brasil em 2009 e em todos os idiomas gritavam junto ao povo africano e aos demais povos: “por um mundo mais justo, sem violência e equitativo”.
            O cenário era um imenso e fértil terreno da diversidade social mas sobretudo marcado pela cor negra da pele e pelo modo de vestir. Eram muitos panos coloridos, típicos de um povo africano e que pintavam os mais de três quilômetros percorridos até a Universidade Cheikh Anta Diop de Dacar.
            A língua mais falada no Senegal é wolof, mas era em francês, espanhol, inglês, árabe, português e muitos outros idiomas que os participantes gritavam em voz alta que "outro mundo é possível". Além disso, criticavam também o capitalismo, que eles responsabilizaram pela pobreza de milhões de pessoas no mundo.
No decorrer da caminhada encontrávamos caminhões com alto-falantes com música folclóricas que acompanharam a manifestação, grupos de vários países fizeram os participantes dançarem e transformaram a caminhada mais amena em ritmo de uma verdadeira festa africana.

As mulheres do Senegal
            É habitual ver as mulheres com seus rostos cobertos e suas vestes fechadas dos pés ao pescoço, assim como é “normal” presenciarmos mulheres carregando seus filhos nas costas e saber que mulher não pode sair desacompanhada em via pública. Além disso, é “normal” que em países da África a poligamia masculina é permitida e que atualmente mulheres e meninas venham a morrer ou sofrer seqüelas irreversíveis por conta da castração genital.
            Mas esta história, mesmo que em passos lentos, teima em se modificar. No Senegal, o envolvimento das mulheres para sair da marginalização e da discriminação aconteceu por meio das associações e organizações femininas oriundas da elite intelectual. E as primeiras feministas vieram da Escola Normal das Jovens Mulheres de Rufisque (é desta escola que saíram as primeiras mulheres escritoras do Senegal) e organizaram-se para criar estas associações[1]. E assim foi por muito tempo, a história sendo contada e recriada pelas escritoras, as quais fazem parte das primeiras gerações que, através dos quadros desenhados sobre a sociedade, mostraram, com palavras, o sofrimento vivenciado pelas mulheres na sociedade senegalesa, esta realidade foi mostrada na 11ª Edição do FSM em Dacar.

E a luta tem de continuar...
            Somente em 1978 com manifesto de Awa Thiam, escritora e ativista, foi que as mulheres senegalesas começaram a questionar o patriarcado que sufocava as mulheres e à elas era destinado um papel secundário na sociedade. Foi por causa deste movimento de igualdade e a consideração dos direitos das mulheres que o Senegal vota uma lei contra as mutilações genitais femininas em 1999, vinte anos depois.
            Foi com a Conferência africana sobre as mulheres em 1994 e, sobretudo, a de Beijing em 1995, que os movimentos de mulheres começaram a introduzir em seus programas as questões críticas que impediam a luta das mulheres senegalesas. 
            O Senegal, de acordo com as disposições da Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação em relação às mulheres (CEDAW), adotou a lei nº 99/05 de 29 de janeiro de 1999, relativa à penalização do assédio sexual, das mutilações genitais femininas, das violências conjugais, da pedofilia e ao reforço das sanções quanto ao estupro e o incesto. Esta lei constitui uma vitória do movimento das mulheres não só no Senegal, mas no mundo todo.[2]
            Se por um lado, Senegal ratificou quase todas as Convenções e Tratados relativos à proteção da pessoa, por outro, isto não se traduz na vida real. A fome e a miséria ainda fazem parte do cotidiano de milhões de mulheres e crianças.
Da vida real às contradições

            “Nós respeitamos as mulheres” disse o Presidente do Senegal Abdoulaye Wade em cerimônia realizada com o ex Presidente Lula no Fórum Social Mundial. Verdade ou não, no Senegal, a representação das mulheres em instituições políticas ainda é muito baixa. As mulheres constituem mais de 52% da população total, de acordo com as estatísticas oficiais do país. Na Assembléia Nacional, só há 33 deputadas, representando 22% do total. Só há sete mulheres presidentes de câmaras num total de 107. Praticamente não existem vereadoras nas zonas rurais e 12 mulheres compõem os cargos de Ministras no Governo Wade, incluindo um Ministério de Gênero e outro da Igualdade.
            Mesmo assim, considerando que 95% da população senegalesa é muçulmana, os Deputados da Assembléia Nacional por arrasadora maioria aprovaram em maio do ano passado, a lei de igualdade absoluta entre homens e mulheres em todas as instituições cuja escolha seja parcial ou total, ou seja, as listas de candidatos para as instituições cuja eleição seja parcial ou total, serão compostas alternativamente por pessoas de ambos os sexos determina a Lei da Paridade de Gênero.  A legislação prevê que no caso de o número de membros da instituição ou organismo for ímpar, a paridade se aplicará ao número par imediatamente inferior.
            Por iniciativa do Presidente Wade, as portas do Exército e da Gendarmaria do Senegal foram abertas às mulheres, que foram também admitidas em várias outras instituições reservadas até agora aos homens, segundo informou a Ministra de Gênero e Relações com as Associações de Mulheres Africano e Estrangeiras, Sra. Awa Ndiaye.
            A cidade de Dakar nasceu a partir de um forte francês, substituindo Saint-Louis como capital do país em 1902. Foi também a capital do Mali desde 1959 a 1960, tornando-se mais tarde a capital do Senegal.
            Além disso, é importante lembrar que em Dacar se localiza a Ilha de Gorée, que durante quase 400 anos, entre os séculos XV e XIX[3], o local foi o maior centro de tráfico negreiro para a América.  De Gorée saíram 15 a 20 milhões de africanos – homens, mulheres e crianças - para servir de mão de obra escrava em toda costa oeste dos Estados Unidos, no Brasil e no Haiti. Na casa hoje conhecida como “a Casa dos Escravos” existe um lugar chamado “a porta sem retorno”, pois muitos que passaram por ali sequer desembarcaram com vida do outro lado do Atlântico.
            No ano de 1978, que a UNESCO passou a considerar este lugar como  Patrimônio da Humanidade para ser lembrado pelo mundo inteiro como um exemplo de exploração de um povo, a não ser seguido.
            Para o povo senegalês que viveu uma semana de euforia, de batuques de todas as sonoridades e de todas as cores e raças, de encontro com todos os povos, que ecoaram gritos de ordem de todas as tribos, é importante que o mundo lhes dê retorno de um outro mundo possível. Sem a violação dos direitos humanos e com liberdade para as mulheres.


[1] Aminata Dieye
[2] Ministère de la Famille, du développement social et de la Solidarité Nationale (2003). Evaluation Finale du Plan d’Action National de la femme.Dakar
[3] Fonte: www.africa.jocum.org.br

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